O algodão está tão parte da vida de cada um de nós, que às vezes nem nos damos conta de que, para que ele esteja logo ali, na calça jeans, na camisa, no lençol, na almofada e até na maionese, uma quantidade enorme de pessoas se esforça para isso, nos mais diversos elos da cadeia produtiva da fibra. No mundo, estima-se que 100 milhões de famílias estejam envolvidas ao longo dos seus muitos elos. No Brasil, o 3º maior produtor de algodão dentre os cerca de 100 países que o cultivam, somente nas fazendas certificadas ABR, na safra passada, são cerca de 38 mil pessoas diretamente, ou, indo além, 38 mil famílias.
Falar em família tem tudo a ver quando se trata da produção de algodão. Em toda parte, a atividade é majoritariamente empreendida por grupos familiares. Para alguns deles, a tradição remonta há muitas gerações, e não são poucos o que esperam ver esse bastão, ou melhor, “novelo”, se estender a perder de vista no futuro. Por isso, em 2024, a Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa) escolheu o tema “A fibra de todas as gerações” como mote da campanha nacional para o Dia Mundial do Algodão do Algodão, celebrado, desde 2020, em 07 de outubro.
Grupo Pinesso – Algodão de pai para filho e para sempre
Neto de agricultores italianos, que passaram o ofício ao seu pai, o produtor Gilson Pinesso ainda guarda na memória as lembranças da colheita, em um tempo em que todo o processo era feito à mão. “Eram os anos de 1970, e meu pai plantava algodão no município de Engenheiro Beltrão, no Norte do Paraná. Colher o algodão era parte dos meus deveres e dos meus dois irmãos, durante a safra, todos os dias, depois da escola. Nós éramos três meninos e duas meninas, que ficavam encarregadas de ajudar nossa mãe no serviço de casa”, lembra com saudade. Hoje, Gilson Pinesso, economista por formação e agricultor por paixão, planta algodão em Marcelândia, no estado de Mato Grosso, e já conta com auxílio de dois dos seus quatro filhos, Jefferson, o mais velho, engenheiro agrônomo, e Stephanie, administradora de empresas, que é a diretora financeira.
“Jefferson é o meu fiel escudeiro para tudo o que é ligado à agricultura e à pecuária. Já Stephanie trouxe para o negócio da família sua experiência dentro e fora do Brasil. Morou na China e na Nova Zelândia, e trabalhou num grande banco francês”, conta. Essa é a geração que hoje está com o “novelo”, mas, a caminho, dois pequenos Pinessos já dão mostras de que vão assumi-lo em alguns anos: os gêmeos Matheus e Miguel, que, em breve, completam seis anos.
“Eles são novinhos, mas já estão apaixonados pelo agro. Adoram ir para a lavoura e já foram até para o Congresso Brasileiro do Algodão”, diverte-se Pinesso. “Nós trabalhamos e vivemos perto da natureza. O algodão é uma coisa maravilhosa. Uma camisa de algodão se degrada na terra rapidamente. Não polui o ambiente. Volta para a natureza de onde veio. Eu vejo meus filhos envolvidos no processo, e isso me deixa feliz e orgulhoso”, derrete-se o pai.
TBM – Do capulho à usina, da usina ao fio, e do fio à malha
Bezerra de Menezes é um nome tão imbricado ao algodão, quanto os fios e malhas que a família produz. A tradição com a fibra começou com o plantio, nos anos de 1940, no Ceará, quando o estado ainda figurava no ranking dos maiores produtores nacionais, nos tempos em que o bicudo ainda não havia chegado ao Brasil e empurrado a cultura para o centro-oeste do país.
Mas a arte de transformar a fibra começou aos poucos. Da plantação, atividade que ficou no passado, veio a usina de descaroçamento, adquirida por volta de 1946, quando o patriarca José Bezerra de Menezes faleceu, e a família, com as suas economias, comprou a primeira de nove usinas que chegaram a ter entre Ceará, Piauí e Goiás. O filho mais novo de José, Ivan – que se tornaria o fundador da TBM – foi o administrador da usina.
Era na usina que o pequeno Ivan – neto de José – gostava de brincar, na tulha de algodão, de subir até o alto da montanha de pluma e sentir o cheiro da fibra. Cheiro de infância que ainda hoje marca seus dias, à frente da TBM, empresa que possui quatro plantas industriais para produção de fios e malhas, onde trabalham cerca de 1,8 mil pessoas.
“Era tudo diferente. Desde o algodão em si, que era uma cultura perene, até a comercialização. Não esqueço de meu pai tratando com os ‘fregueses’, pequenos agricultores que levavam a produção para descaroçar. Ele era muito querido pelo jeito como os tratava, e eles também gostavam de minha família e de mim, traziam sempre presentes, ovos, frutas, e até pequenos animais, sabendo que eu adorava bichos”, recorda. Em 1979, Ivan, o pai, fez um projeto para montar uma fiação. Com a chegada do bicudo, em 1983, a família se concentrou nesta indústria, parando com as atividades de descaroçamento.
Ivan, o filho, já tinha 28 anos, um diploma em Direito e suas próprias empresas na área de construção civil, quando o pai o convidou para chegar mais junto no negócio da família, a fiação. “Fui o único a entrar. Tenho mais três irmãs”, conta.
Hoje, Ivan, o pai, tem 92 anos. O filho, com 60 anos recém completados e o mesmo fôlego de empreendedor, há dez vem preparando a sucessão, planejada para 2024. Quem vai dar conta do novelo, desta vez, será um outro Ivan, o neto, formado em Administração de Empresas, que está pronto para assumir o comando, aos 30 anos de idade.
“O Ivan (neto), trouxe para a empresa uma gestão muito mais moderna, participativa, e dinâmica e com muitas ferramentas novas de gestão. Eu me sinto muito orgulhoso, feliz e gratificado por ter um filho com aptidão para o negócio, para levar adiante a tradição da família. É muito bom fazer um sucessor”, comemora.
Se depender de filhos trabalhando com o algodão, o fio dessa meada ainda tem muito a crescer. Luca, também filho de Ivan (filho), tem 20 anos e também já se prepara para entrar de vez para o time da TBM, na área de tecnologia e novos negócios. Ele mora nos Estados Unidos e estuda Economia e Empreendedorismo.
Cataguases – Cinco gerações e o algodão no DNA
O algodão é, literalmente, o “pano de fundo” para a longa trajetória da família Peixoto na indústria têxtil nacional. Essa é uma história de cinco gerações, que já ultrapassa um século e começa com o tataravô de Tiago Inácio Peixoto, hoje diretor presidente e diretor comercial da Cataguases. Segundo Tiago, seu tataravô, Manuel Inácio Peixoto, era um imigrante português que chegou ao Brasil ainda jovem, e, não se sabe por quê, escolheu para fincar raízes a região de Cataguases, na Zona da Mata de Minas Gerais, onde começou a prosperar como comerciante. Em 1911, veio a oportunidade de comprar uma pequena indústria de fiação e tecelagem instalada na cidade, que estava em dificuldades, e a rebatizou de “Manuel Inácio Peixoto e Filhos”.
Segundo Tiago, desde o começo, a visão empreendedora do tataravô foi fundamental. Ele logo envolveu seus filhos no negócio, criando uma estrutura familiar que foi essencial para o sucesso da empresa. Após sua morte, foi a segunda geração que assumiu o comando, com o nome Indústrias Irmãos Peixoto. “Porém, meu bisavô, que fazia parte dessa geração, decidiu seguir um caminho diferente. Ele vendeu sua participação na sociedade com os irmãos e, em 1936, fundou a Companhia Industrial Cataguases, que é a empresa que eu e minha família continuamos a liderar até hoje”, narra Tiago.
Mas, num revés da vida, seu bisavô faleceu ainda muito jovem, e de forma inesperada. Coube ao avô de Tiago tocar os negócios, ao lado de sua mãe viúva, Francisca. “Ela era uma verdadeira ‘mulher de fibra’”, Orgulha-se Tiago. Carinhosamente chamada de Chica, Francisca desempenhou um papel essencial na continuidade do negócio familiar, e hoje o Instituto de responsabilidade social da Cataguases leva o seu nome.
“Foi com essa união entre meu avô e a mãe dele, Chica, que a Cataguases entrou em um período de grande crescimento nas décadas de 60 e 70. Durante esse tempo, a empresa Irmãos Peixoto, que deu origem à nossa jornada, começou a passar por dificuldades, e meu avô enxergou uma oportunidade de resgatar as raízes da nossa família. Ele negociou a compra da empresa e, até o final dos anos 1990, a Cataguases e a Irmãos Peixoto operaram como indústrias distintas. No início dos anos 2000, sob a liderança do meu pai, decidimos unificar as duas empresas em um único CNPJ, e a Companhia Industrial Cataguases prevaleceu como a empresa que conhecemos hoje”.
Neste outubro de 2024, a Cataguases completará 88 anos de história com esse nome. “Mas, se contarmos desde o início da nossa trajetória, estamos falando de mais de 113 anos de atuação na indústria têxtil”, calcula.
Segundo Tiago, em todos esses anos, o algodão sempre teve um papel central na atividade familiar. “Desde que me entendo por gente, lembro-me de ouvir meu pai falar sobre como o algodão é essencial para o que fazemos. Nos anos de 1980 e 1990, enfrentávamos muita dificuldade para encontrar pluma de qualidade aqui no Brasil. Precisávamos de uma fibra mais longa e resistente para os nossos tecidos, que são leves e exigem um padrão de excelência elevado. Felizmente, essa realidade mudou bastante, e hoje o Brasil é um dos maiores produtores de algodão de qualidade no mundo, o que nos enche de orgulho de fazer parte dessa cadeia produtiva.
Hoje, a Cataguases emprega cerca de 1,5 mil colaboradores e exporta mais de 20% da produção para países da América Latina, além de atender a grandes redes de moda brasileiras como Renner, C&A, Riachuelo, e marcas do Grupo Soma. “Temos orgulho da nossa trajetória, e da nossa história com o algodão, que é, verdadeiramente, o nosso DNA. O algodão faz parte da nossa essência, e a nossa missão é continuar a transformar essa matéria-prima em produtos de alta qualidade, como fizemos por mais de um século”, finaliza Tiago.
Emphasis – duas gerações de um sonho em azul índigo
Trinta e cinco anos depois, com uma produção de 650 mil peças por mês e um consumo anual de 10 milhões de metros de tecido, fica até difícil para Gabriele Ghiselini imaginar que a Emphasis, uma das mais robustas confecções de roupas de denim e sarja do país, começou como um negócio caseiro, de costura e pequenos consertos, em Sorocaba, no interior de São Paulo, como uma fonte de renda extra, para sua família, que estava para crescer.
“A Emphasis nasceu em 1989, com minha mãe, Cristina, e minha avó paterna, Lucimar. Minha mãe estava grávida de mim, com 26 anos, na época, e precisava trabalhar”, conta a, hoje, diretora administrativa da companhia, que há 24 anos foi transferida para Votorantim, com estrutura verticalizada, desde a criação, até o acabamento das peças. O algodão, base do denim e da sarja, faz parte dessa história, como uma escolha visionária das duas empreendedoras iniciais, já que o jeans, por sua natureza, é um tecido mais complexo de se trabalhar.
A iniciativa deu tão certo, que a demanda não tardou a aumentar. Cristina e Lucimar logo se tornaram uma facção de um fornecedor e as portas foram se abrindo, mas nunca imaginaram que o pequeno negócio escalaria tanto.
“Elas não sabiam sequer o que eram máquinas de travete, overlock ou interlock.
Faziam costura caseira. Então, foram se informando, comprando os equipamentos, aprendendo a manusear, tanto que a gente fala que, na empresa, minha mãe era a mecânica, a costureira, e até do transporte, ela cuidava”, diz Gabriela, lembrando que, antes de fundar a Emphasis, Cristina era líder de produção numa metalúrgica.
Segundo Gabriele, a grande virada se deu quando, há cerca de 30 anos, a C&A bateu à porta. “Eles ofereceram alguns pedidos e viramos fornecedores. Crescemos junto com a C&A no Brasil. No início, havia um representante entre a multinacional e a nossa pequena empresa familiar, mas chegou um momento em que começamos a tratar com eles diretamente. Com o sucesso, até meu pai, que, na época, era gerente de uma empresa de construção civil, pediu o desligamento, para trabalhar integralmente, com a minha mãe”, narra Gabriele.
Atualmente, seu pai, Valdir Ghiselini, continua na empresa e a mãe se dedica aos trabalhos sociais. “Mas, estamos num processo de sucessão familiar, no qual os filhos, eu e o Paulo, estamos fazendo, aos poucos, a transição para assumirmos a administração da companhia. Sei que vai ser muito difícil, para meu pai, a sucessão, mas, a gente sabe que ele precisa descansar, curtir os netos”, afirma.
A C&A continua sendo o principal cliente, mas a Emphasis trabalha também com a Riachuelo, as Pernambucanas e as Lojas Torra. A empresa tem uma marca própria, a Volts, e atualmente emprega três mil famílias, direta e indiretamente. “O algodão é parte importante da nossa vida. Através dele conquistamos tudo o que temos e empregamos tanta gente”, declara Gabriele.
AG Surveyors – De geração em geração, um fio que não se parte
Por muitos anos, Adriana Freitas lidava com – como ela mesma diz – “a fibra oposta”, em parceria com a mãe, num negócio de aluguel de trajes de festas e vestidos de noiva. Mas a fibra natural estava sempre bem ao seu lado, já que Carlos, ou Carlinhos Freitas, como o chamavam os amigos do mundo do algodão, trabalhava, há mais de 20 anos no ramo de inspeção e certificação de embarques da pluma, até fundar a AG Surveyors, referência nesse tipo de serviços no Brasil.
Em 2015, Carlinhos foi diagnosticado com um câncer raro, e Adriana entendeu que seria muito difícil fazê-lo diminuir o ritmo e cuidar da própria saúde. “Falei para ele: já que você não desacelera, eu vou trabalhar com você”, lembra.
No início, esse ‘trabalho’ na AG consistia, basicamente, em cuidar da alimentação e da medicação de Carlinhos. “Eu não entendia nada de algodão, mas logo me apaixonei também. Devagarzinho, a gente foi identificando onde eu poderia ajudar. Fui achando as áreas de que gostava. Fiquei na Administração, no Financeiro. Então, larguei o meu outro ramo de vez para apoiá-lo. Para ele, também foi muito bom. O Carlos me incluía em tudo. A gente curtia muito estar juntos, na empresa, nas reuniões e nos eventos do algodão. Deu super certo”, diz.
Já a filha Giovanna, desde pequenininha, já ouviu o “chamado” da fibra. “Meu pai dizia que quando a gente era picado pelo bichinho do algodão, não saía mais dele”, rememora Giovanna, que hoje, aos 24 anos, atua no comercial da empresa e tem também foco em operações no destino.
“Foi um caminho natural, trabalhar com algodão, e, aqui, na AG. Antes, eu vinha só para observar mesmo. Para entender como tudo funcionava. Daí, comecei a executar um pouquinho algumas funções, a ajudar onde eu podia, a ficar mais do lado do meu pai, acompanhando-o nas reuniões, só como ouvinte”, conta. “Foi bem legal porque eu pude, obviamente, passar mais tempo com ele e aprender muito sobre essa parte comercial, vendo o jeito como ele sempre lidou com os clientes, o que, de fato, sempre foi um tratamento diferenciado, na minha visão”, complementa.
O gosto pelo algodão e as contingências do destino permitiram à família Freitas intensificar um convívio com Carlinhos que, infelizmente, seria interrompido. Em janeiro de 2024, ele faleceu, mas, hoje, Adriana e a filha Giovanna levam adiante o legado de Carlos Freitas. Em breve, provavelmente, mais um Freitas vai ajudar a levar a puxar o fio desse novelo, João Vítor, que agora está com 13 anos.
“Esse, com certeza, já está ‘contaminado’ pelo mesmo amor pelo algodão, que está na família. Seja na AG Surveyors ou nas muitas empresas pelas quais Carlos passou, ele contribuiu para o algodão brasileiro, e tenho certeza de que está muito feliz em saber que estamos levando essa paixão adiante”, finaliza Adriana.