Durante a Mesa Redonda “Os desafios da mudança do clima para o Bioma Cerrado – Agricultura, pecuária, florestas e bioenergia”, moderada pelo pesquisador Eduardo Alano, chefe-adjunto de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa Cerrados (DF), foram discutidas as influências das mudanças climáticas na bioenergia, na pecuária, na agricultura e nas florestas no Cerrado, considerando os problemas, perspectivas e oportunidades.
Professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), Sybelle Barreira: “Mais de 70% do desmatamento goiano e mato-grossense estão relacionados ao licenciamento. Isso, que era um desafio muito grande, passa a ser um desafio que conseguimos vencer”
Sybelle Barreira, professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), comentou sobre a situação e os principais desafios colocados pelas mudanças do clima para o setor florestal no Cerrado. Ela apontou que o desmatamento ilegal é um desafio que tem sido vencido com maior fiscalização e controle. “Em 2024, Goiás, que tem uma grande área de Cerrado, teve uma redução de mais de 50% do desmatamento. Isso é uma vitória do estado”, disse, citando dados do Relatório Anual do Desmatamento (RAD). “Mais de 70% do desmatamento goiano e mato-grossense estão relacionados ao licenciamento. Isso, que era um desafio muito grande, passa a ser um desafio que conseguimos vencer”, completou, ressaltando que não se pode ignorar o Código Florestal brasileiro.
Barreira também destacou como desafio a pesquisa e a comunicação científica para levar informações efetivas para a realidade do produtor rural. “É um desafio, mas a gente vem vencendo como oportunidade. Precisamos de investimento público e provado para seguir com a pesquisa e a extensão rural”, afirmou.
O coordenador-adjunto de Transição Energética da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Henrique Paiva de Paula, abordou a situação no setor de bioenergia. Ele explicou que a transição energética é discutida em função das mudanças climáticas e deve equilibrar a segurança energética, a equidade energética (capacidade de pagamento) e a sustentabilidade ambiental. “Equilibrar esses três pilares é desafiador. No contexto atual de transição energética, principalmente mundial, alguns pilares começam a ganhar mais peso, como a segurança energética, que pode trazer elementos que dificultem a manutenção dos outros dois pilares”, observou.
Outro desafio é abordar o setor energético em nível de bioma, o que pode gerar oportunidades, segundo de Paula. “Quando se fala em transição energética, estamos sempre falando de adição. Não estamos substituindo um combustível por outro, ou um vetor energético por outro. Estamos acrescentando mais de diferentes vetores energéticos”, disse, lembrando que a base hidrelétrica brasileira trouxe um diferencial para o País e que, nos últimos 15 anos, foram introduzidas outras fontes de energia. “Um desafio para o setor energético, quando se fala de transição energética e mudanças do clima, é como seguir trabalhando adição energética e transição energética ao mesmo tempo. É precisar de mais energia e saber qual tipo de energia queremos”.
Para o consultor do Instituto Mato-grossense da Carne (IMAC), Giovane Michelon, o principal desafio para a pecuária frente às mudanças climáticas é o fato do setor ser tratado como maior “vilão” do desmatamento ilegal. “É ultrapassar (a questão), demonstrar e saber ‘separar o joio do trigo’ de quem faz errado e de quem não faz, e não tratar a regra como exceção”, afirmou, apontando a necessidade de se traçar macroestratégias como a imagem da carne mato-grossense (no caso do IMAC), a intensificação da produção e redução do carbono na cadeia pecuária, o avanço na agenda da regularização ambiental, bem como a transparência e rastreabilidade de toda a cadeia.
“A maior dificuldade é tirar a mácula do pecuarista de principal desmatador, de inimigo ambiental. E na realidade, não é isso, muito pelo contrário. Hoje, os maiores controles são justamente dos pecuaristas”, comentou, salientando a importância de maior proximidade das instituições com o produtor e mostrar que esses desafios podem ser superados.
Leny Rosa Filho, superintendente federal de Agricultura e Pecuária do Estado de Mato Grosso (Mapa), apontou a politização da pauta ambiental como um dos principais desafios para a agricultura no contexto das mudanças climáticas. “Governos federal, dos estados e dos municípios têm responsabilidade. Todas as práticas fomentadas pelo Mapa levam em consideração o conhecimento científico e o respeito ao meio ambiente. Porém, algumas legislações ambientais nos estados são aprovadas sem levar em consideração essas questões. Todos têm que falar na mesma língua, valorizando sempre o conhecimento científico”, disse.
O superintendente também apontou como grande desafio a redução das desigualdades no campo. Ele citou algumas ações empreendidas pela Superintendência Federal de Agricultura e Pecuária no estado, como a implantação da Unidade Mista de Pesquisa e Inovação (Umipi) da Embrapa na Baixada Cuiabana e o Programa Solo Vivo, voltado à recuperação de áreas degradadas em propriedades de agricultura familiar.
Oportunidades
Para Giovane Michelon, as oportunidades para a pecuária vão sendo criadas à medida que as políticas públicas deixam de ser eficientes. Ele citou o Programa de Reinserção e Monitoramento (Prem), criado pelo IMAC para reinserção, no mercado, de pecuaristas bloqueados pelas indústrias, por meio de uma ferramenta que auxilia no monitoramento da regeneração de áreas desmatadas ilegalmente no estado para fins de regularização ambiental.
“Acabamos criando e antecipando o processo de recuperação ambiental por meio do Prem, que faz o monitoramento no sistema, mas trazemos o produtor novamente ao mercado, ele passa a ter uma autorização de comercialização. E a partir disso, podemos consultar se ele está realmente recuperando aquela área que foi desmatada irregularmente”, explicou. O Prem deu origem ao Passaporte Verde, política pública apoiada pelo Ministério Público Federal que auxilia a regularização ambiental em Mato Grosso. “Por meio dessa política, vamos conseguir trabalhar com o processo de intensificação, buscar a redução de carbono na produção e a rastreabilidade”.

Coordenador-adjunto de Transição Energética da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Henrique Paiva de Paula: “Equilibrar esses três pilares é desafiador. No contexto atual de transição energética, principalmente mundial, alguns pilares começam a ganhar mais peso, como a segurança energética, que pode trazer elementos que dificultem a manutenção dos outros dois pilares”
Henrique de Paula informou que a Aneel tem criado grupos de trabalho para participarem da construção de políticas públicas como o Plano Clima, a Taxonomia Sustentável Brasileira, do Plano Nacional de Transição Energética e do Nova Indústria Brasil, que afetam a bioenergia e os diversos segmentos do setor energético. Também têm sido empreendidas atividades regulatórias, como a regulamentação de sistemas de armazenamento de energia, como as hidrelétricas reversíveis. “Tradicionalmente, o Cerrado tem boa parte das pequenas centrais hidrelétricas do Brasil, por exemplo. Será que fazer esse olhar por bioma e buscar oportunidades para esse tipo de atividade regulatória faz sentido? É uma reflexão que levarei para a Agência”, disse.
Outra oportunidade vislumbrada pelo coordenador-adjunto de Transição Energética da Aneel está no Programa de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação, que definiu sete temas estratégicos – entre eles, eletricidade de baixo carbono e eletrificação da economia, que envolvem a bioenergia.
Conscientizar os jovens sobre a importância tanto da agricultura como da preservação do meio ambiente deve ser um tema a ser levado para a discussão na COP30, na opinião de Leny Rosa Filho. Ele informou que o Mapa está reestruturando o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), com a melhoria e modernização das estações meteorológicas, a fim de levar os dados meteorológicos de forma mais precisa aos produtores.
Sybelle Barreira salientou a necessidade das instituições de ensino e pesquisa a reaprenderem a fazer a comunicação científica junto ao público jovem. “Isso não é fácil”, frisou. A professora da UFG citou problemas no setor florestal decorrentes do aumento das temperaturas, como perda de habitat de flora e fauna, necessidade de remodelação da flora e da fauna para adaptação às novas condições, elevadas taxas de mortalidade de espécies vegetais que têm comprometido a regeneração natural, queda na produtividade do eucalipto, perdas de padrões de sazonalidade das chuvas e o aumento das emissões de óxido nitroso para a atmosfera.
Nesse sentido, ela apontou algumas estratégias. “O Plano ABC+ é uma excelente estratégia, principalmente pelos sistemas integrados e os plantios (de eucalipto) em monocultura. Mas precisaremos de clones adaptados a esse aumento de temperatura. Faço um pedido para que os dados do Plano ABC e do Plano ABC+ sejam liberados para que possamos saber onde esses sistemas integrados e plantios em monocultura foram implantados”, disse, argumentando que as informações poderão auxiliar no avanço da pesquisa. Barreira sugeriu, ainda, a elaboração de programas estaduais que pautem o desmatamento ilegal zero e defendeu o investimento de recursos públicos e privados também nos pequenos grupos de pesquisa na área florestal.
Papel da ciência
Henrique de Paula apontou o desafio de comunicar adequadamente a política pública e a ciência quando ambas convergem, tanto para o público em geral como internamente nas instituições, citando a elaboração de um guia prático sobre mudanças climáticas e transição energética para os técnicos da Aneel, bem como a coleta de impressões da sociedade sobre a publicação. Ele ressaltou o papel da pesquisa, desenvolvimento e inovação não apenas para a produção de dados como também para o avanço das tecnologias que contribuam para a transição energética, citando que o primeiro gerador eólico brasileiro foi oriundo de projetos de pesquisa de uma chamada pública da Aneel, e que está em discussão um edital para projetos voltados à produção de hidrogênio de baixo carbono por meio de bioenergia.
Para Leny Rosa Filho, é preciso harmonizar o discurso sobre as mudanças climáticas na comunidade científica, tendo como base a ciência e conhecimento científico. “Talvez se deva fortalecer o papel da ciência, melhorar a narrativa e gerar dados para que se combata as falas no sentido de que as mudanças climáticas não estejam promovendo algumas situações que vivenciamos no dia a dia”, comentou.
A geração de informações é um grande desafio para a ciência, na visão de Sybelle Barreira. “Com desafios, geramos oportunidades de desenvolvimento científico e tecnológico. Este é o grande eixo que precisamos trabalhar. Não se trata apenas de financiamento”, afirmou, ressaltando a importância da formação de redes de pesquisa, bem como de redes abertas de dados. “A ciência pode colaborar muito para esse diálogo, para avançarmos em termos de mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Mas precisamos saber quem faz o quê”, completou.
Giovane Michelon ressaltou que as políticas públicas devam ser fundamentadas com pesquisa científica. “Uma política pública feita simplesmente vinculada a dados socioeconômicos, porém sem dados científicos, acaba se tornando vazia”, comentou. Ele salientou que a política pública não é uma receita de bolo. “Quando se fala em recuperação ou regeneração, não podemos aplicar a mesma lógica da Amazônia no Cerrado ou no Pantanal. São lógicas distintas e que devem estar fundamentadas por meios científicos. Hoje, temos que entender que algumas lógicas se alteraram. E o que aplicávamos antes talvez não funcione mais, justamente pela mudança climática”, argumentou.
Ao final da Mesa Redonda, os participantes responderam a perguntas do público sobre manejo de pragas e doenças face às mudanças climáticas; retorno econômico de investimentos em sustentabilidade e o reconhecimento dos produtores que adotam práticas sustentáveis; e o componente florestal na produção de carne e sua incorporação na agricultura familiar.